sexta-feira, 29 de abril de 2011

Pombas

Lindos ratioativos, digo, radioativos ratos alados que infestam as ruas da minha querida e cancerígena cidade de São Paulo! Ah... Que fascinantes pragas urbanas - ou suburbanas - são!
Carregam em si, em seus corpinhos miúdos e leprosos, todo um ecossistema: Pulgas, piolhos, bactérias, fungos etc, com pelo menos um exemplar de toda e qualquer forma de vida microscópica... Um deleite para os biólogos!
Reconhecidas por sua capacidade ímpar de cagar sobre cabeças e pára-brisas, é de conhecimento geral que nascem com um fantástico aparelho de mira a laser de alta precisão em suas cloacas.
A espécie Columba superior, a mais  abundante nas grandes cidades, além de radioativa, apresenta o gene mutante W, similar em 96% das bases nitrogenadas ao gene-X dos X-Men. Facilmente encontrados na Avenida Paulista, os indivíduos da espécie geralmente apresentam um ou dois dedos a mais, nos pés ou na testa, e uma leve luminescência esverdeada oscilante.
Uma linhagem em especial, que inclui as espécies C. superior, C. nojenta e C. maligna, apresenta também comportamento zumbi. Algo que poucos sabem é que o gene zumbi do vírus desenvolvido pela Umbrella Corporation foi extraído justamente dessas pombas. Quando há um Zombie Walk, seu flash mob preferido, elas se fantasiam de humanos e saem às ruas numa tentativa de confraternização com humanos vestidos de pombas, mas freqüentemente são mal interpretadas como meros adolescentes mancos sujos de ketchup.
Algumas espécies mais raras do gênero Columba não apresentam nem gene W nem gene zumbi, mas ainda assim servem de inspiração para a tão efusiva interjeição "Pombas!" que dizemos na tentativa de evitar a dicção de algo menos polido, como "Porra!".
[Texto dedicado ao meu colega Caramelo aka Marcelo K., O Gorfador de Arcos-Íris com Pôneis e Potes de Ouro.]

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Torpor

Deixe-me entrar. Sinta meu aroma sedutoramente vazio e deixe-se levar por ele, sinta-o percorrer suas veias, venha através dele ao meu encontro.
Descanse sua cabeça em meu colo e deixe-me entrar. Eu anestesiarei seu coração ferido, pouparei-lhe da dor que lhe dilacerava o peito, inibirei seus sentidos para proteger-lhe da abrasiva verdade mundana e de seus sentimentos. É possível viver sem eles, você verá, não tenha medo.
Abrace-me e deixará de sentir a necessidade de saciar seus desejos, sua fome, sua sede. Abrace-me e descanse suas pernas, sua  voz, seu coração e sua alma; você não precisará mais perseguir qualquer objetivo, não precisará mais gritar em defesa de causa alguma, não desperdiçará mais tempo com seus sentimentos tolos, não se preocupará com as estúpidas noções de bem e mal.
Adormeça surdo enquanto com uma canção de ninar lhe embalo estaticamente.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Poder Mudar II

Eu sempre acreditei que as pessoas podiam mudar. Olhava para o que eu achava que havia sido e para o que achava que tinha me tornado e sentia algum orgulho por, supostamente, ter alcançado meu objetivo e ser o que desejava ser.
Então os anos passaram, os colegas passaram, as fases passaram e as críticas também, mas chega uma hora em que as pessoas, com razão, não têm mais tempo nem interesse de ouvir desculpas forjadas no mesmo molde falho, e os anos, os colegas e as fases que seguiram, inéditos, trouxeram críticas humilhantemente similares. E aí a coragem de olhar no espelho falhou.
Minha coragem falhou comigo como venho falhando com meus colegas, meus amigos, minha família e a sociedade. Mas minha coragem é minha responsabilidaede e sua falha só agrava as minhas pois delas faz parte.
Pedi perdão algumas vezes, mas queria mesmo era pedir perdão por saber que continuaria a cometer os mesmos erros. Acho que muitas dessas vezes só procurava por autoindulgências, afinal, e agora quero de novo ser perdoada e poder me perdoar por isso.
Eu sempre acreditei que as pessoas podiam mudar. Isso não significa que não acredite mais que elas possam, mas que nem sempre isso acontece ou que, quando acontece, nem sempre acontece como se planeja.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Leitor Anônimo

Querido leitor anônimo,

Sei que às vezes nem é preciso lhe convidar pessoalmente a ler um novo texto meu publicado, então espero que você encontre esse sem um convite pessoal. Ou talvez eu tenha em realidade mais esperança de que você não o encontre nunca. Nesse caso, a única explicação que posso dar para eu ainda decidir publicá-lo é que curto viver "perigosamente". O que não é exatamente verdade na maioria das vezes. Logo, concluo que a primeira hipótese é mais plausível.
Álcool uma vez tirou de você que havia sido um erro ter se afastado de mim. Não pude deixar de me perguntar se isso significava que você pretendia consertar o suposto erro ou se era apenas uma constatação a partir da qual você não pretendia fazer nada. Não foi preciso muito esforço também para perceber que suas palavras davam margem a duplas interpretações noutro aspecto: poderiam significar que você decidiu lucidamente ir embora ou que, bem como eu, tem tanto medo do abandono e da solidão, que, diferente de mim, preferiu deixar aqueles com quem se importa antes de se expor ao risco de ser deixado por eles ou antes de por eles desenvolver afeto. Ou talvez não se tratasse de nada disso e fosse apenas o álcool.
Você há de reconhecer ter me dito uma vez também que minha principal relação com as pessoas era a desconfiança, e eu reconheço não ter sido capaz de admitir essa verdade. Mas você um dia ainda perceberá que disse isso de modo a ser plenamente aplicável a si mesmo, tanto quanto ou mais do que a mim.
Por um lado, você quis alguém que entendesse seu medo; por outro, não soube lidar com o fato de haver mais uma pessoa receosa.
Não digo nada disso com qualquer intenção absurda. Quero apenas pedir o favor de que não me deixe lhe contar mais nada, a menos que você pretenda me contar algo seu também.

Grata,
Clara

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Lágrima

O ar esvaziou os pulmões ao final do mais profundo suspiro, enquanto uma lágrima solitária rolou dos olhos para os cílios e deles pelo rosto abaixo, até as lábios.
O doce sabor de melancolia se espalhou pela boca e invadiram-lhe o pensamento as lembranças, agora já vagas, daqueles momentos que, embora muito profundos, passaram rápidos como um albatroz, lançando impiedosamente uma sombra por sobre qualquer outro pensamento, aprisionando-a como uma escrava de suas memórias. Não se sentia triste, muito menos feliz. Agora percebia mais claramente do que nunca que em sua existência sempre haveria uma lacuna, e a decisão de preenchê-la ou não implicava o mais agoniante dos paradoxos. Qualquer idéia seria inútil, qualquer fantasia seria inviável. Qualquer vislumbre de consciência seria efêmero. Ela se deliciava nesse vício, e a dúvida de se de fato o queria passava menosprezada.